19/03/2014

DIÁRIO DE UM EX-LÍDER


Já não escrevia há algum tempo. Tenho andado ocupado. A tentar sobreviver. Eu explico:

Vamos imaginar a minha casa como um território. Um Estado soberano. Eu sou o governo desse território. Governo em coligação. Tenho sido nos últimos anos um governo democrático e civilizado. Atento às necessidades das minorias, tolerante com os manifestantes, respeitador dos direitos humanos. Um governo tipo o da Suécia ou daqueles países que toda a gente admira pelas políticas incríveis que têm, mas para os quais ninguém quer ir viver por causa do frio de rachar e dos dias curtos. Adiante. Tenho sido um desses governos. A minha política da saúde é irrepreensível. Toda e qualquer necessidade é prontamente assegurada e comparticipada na totalidade. A política da educação um sucesso. As melhores escolas, equipamento, fardas, tudo comparticipado a 100%. Política de cultura, artes e lazer do melhor que há. Política do desporto e da juventude sem precedentes. Finanças e tesouraria do mais brando que há. Ninguém paga impostos, não há taxas extraordinárias. Aqui até a alimentação é oferecida. É um país do caraças este do qual eu sou governo. Sou o Banco Mundial, o FMI, o Banco Alimentar, a ONU, a Disneyland, o Comité Olímpico, a Broadway, a Universal Studios e a NASA num só. Tudo a custo zero. Este meu Estado é o paraíso. Aliás, era.
Porque tenho um raio de um anarquista em constante manifestação que conseguiu destabilizar e derrubar o poder. A seguir seguem-se excertos do meu diário enquanto ex-líder deste território que um dia chamei de Casa :

20/02/2014
Hoje pela primeira vez senti alguma instabilidade social. Sinto que há uma voz dissidente que se começa a mobilizar. Começou com a resistência a lavar os dentes. Vou tentar reunir com a parceira de coligação para tentar perceber o que podemos fazer para apaziguar a situação. Vamos ver. Estou algo apreensivo.

22/02/2014
As coisas estão a começar a piorar. Apesar das tentativas de reforma de algumas políticas, o dissidente está cada vez mais inconformado. As vozes começam a fazer-se ouvir. A resistência inicial ao lavar os dentes espalhou-se a outra áreas da vida. Já não quer comer quando é hora de comer. A não ser que sejam gomas. Nem tomar banho. Sentes-se o clima de tensão cada vez mais acentuado. Estou a ficar deveras preocupado com o rumo das coisas.

25/02/2014
Isto está muito difícil. Muito difícil mesmo. O rebelde está disposto a derrubar o poder. Disso já não tenho dúvida. Começou a afectar a coligação. Reuni hoje com a parceira de coligação e estamos discordantes nas medidas a tomar. O dissidente já não se quer sentar quando se lhe pede. Já não quer ouvir quando tentamos a via do diálogo. Cheira-me que o governo vai caír. Acho que vou ter de recorrer à força para conter um possível golpe de Estado.

27/02/2014
Hoje fui fazer uma endoscopia. Andava com azia e o médico marcou-me uma. Fiz sem anestesia. Porra que foi difícil.

28/02/2014
Hoje sofri a primeira tentativa de derrube. O dissidente mobilizou todas as suas forças e perante a ordem para recuar, avançou. Estou com medo. Consegui conter o avanço temporariamente. Mas começo a perder o controlo do Estado. O dissidente já não cumpre quaisquer ordens. Conseguiu derrubar a coligação. A minha parceira de coligação colapsou. Já me falou na vontade de pedir asilo político. Declarei Lei Marcial.

01/03/2014
O país está a ferro e fogo. Estou desesperado. Já nem à força consigo conter os avanços do dissidente. A parceira de coligação está presa no quarto às escuras. Diz que não aguenta mais. Eu também estou no limite. Acho que já é tarde para pedir a intervenção de uma força internacional. A revolução está em curso. Perdi a mão do país. Declarei Estado de Sítio.

02/03/2014
Está instalado o caos. Nada mais funciona. É salve-se quem puder. Declarei Estado de Emergência.

03/03/2014
Se estiverem a ler estas palavras, é porque não consegui resistir à última investida do dissidente. Estamos presos. Somos diariamente torturados. As técnicas são conhecidas. Privação de sono. Trabalhos forçados. Perguntas e cânticos repetidos vezes sem conta até nos quebrar psicologicamente. Que Deus esteja connosco.

15/03/2014
Consegui tomar como reféns os Dinofroz. Quem diria que aqueles dinossauros minúsculos seriam tão importantes para o rebelde. Vejo aqui forte possibilidade de retomar o poder. Se ao menos eu pudesse encontrar a parceira de coligação. Ah está ali: "- Mulher, sai debaixo da cama. Tenho aqui os Dinofroz e disse-lhe que os queimava se ele não se portasse bem. O poder é nosso novamente".


19 comentários:

  1. rrsss Já lhe notara a falta e esse seu sentido de humor é muito necessário nos tempos cinzentos que vivemos . Além disso, até escreve muito bem!

    O seu dissidente tem , segundo me parece pelas fotos,cerca de três anos....pois, meu caro, começou a fase do "Não": está , realmente, numa situação difícil a coligação.

    Se me permite, dou-lhe umas pistas de actuação( eu sei que não pediu...) face ao anarquista:

    - A coligação deve arranjar estratégias comuns e ser coerente na sua aplicação.

    - A coligação deve mostrar-se unida face ao rebelde, nem que por trás discuta tudo e mais alguma coisa.

    - A firmeza é essencial na demarcação de limites estáveis .

    - O anarquista precisa de afirmar a sua vontade e a coligação vai ter que se equilibrar na corda bamba para dosear as medidas de repressão e as de liberdade de acção dele.

    Agora , explico-lhe porque tomei a liberdade de lhe dizer o que penso: fui profissional de Educação durante trinta e cinco anos e desempenhei todas as funções, exceptuando as de ministra e afins.

    Especificando: trabalhei em sala , dirigi um Centro de bem Estar Social, orientei estágios, dei Formação, publiquei durante anos artigos sobre Educação, Pedagogia, ...

    ESpero que esteja perdoada pela ousadia e que o seu reino volte a ser governável,rrss

    Deixo-lhe a minha solidariedade quanto à endoscopia e oxalá não lhe tenha que acrescentar a clonocospia, como me aconteceu.

    Bom dia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. obrigado São pelos conselhos :) . quanto à endoscopia, foi suficiente. já se percebeu o que tenho, portanto safei-me da colono. :)

      Eliminar
  2. Ah! DEsculpe, Bom Dia do Pai, rrsss

    ResponderEliminar
  3. Eh eh eh muito bom Rui!! Também tenho um dissidente desses cá por casa...!!

    ResponderEliminar
  4. Receio que estejamos a ser tomados... eles estão por todo o lado. Lá em casa também se instalou um e já pediu reforço, que está quase a chegar!!! ;)

    ResponderEliminar
  5. Muito bom! Por aqui também já declaramos estado de emergência há muito. É que temos dois partidos dentro de portas um de esquerda e outro de direita e nunca, em situação nenhum se entendem. Ainda por cima são mulheres e recorrem a todas as armas e estratagemas para derrubar o governo, com lágrimas e com chantagem. A mãe cá de casa já esgotou a paciência há muito, o pai, gosta de achar que tem técnicas, mas já o vi vacilar e esconder-se no quarto e colocar phones. Estamos perdidos!

    ResponderEliminar
  6. Adorei! :) Feliz dia para ti, paizão :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. obrigado Raquel! também adorei o teu texto. verdadeiramente inspirador. :)

      Eliminar
  7. Que bela descrição de como é ser pai ;D

    ResponderEliminar
  8. Olá, sou uma rapariga de 16 anos e estou apaixonada pela maneira como escreve consegue manter-me colada ao ecrã a deliciar-me com cada palavra, fico feliz em poder ler os seus textos, boa sorte e acho que é um ótimo pai. (Se não for pedir muito agradecia que retribuísse o meu comentário com uma breve resposta.) Boa noite!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. claro que respondo. :) obrigado pelas simpáticas palavras. fico feliz de poder partilhar as minhas histórias e de saber que as pessoas gostam de as ler. ser pai é uma das coisas mais incríveis que me aconteceu. provavelmente a maior aventura da minha vida. e é assim que gosto de viver a minha paternidade. como uma aventura sem fim. boa sorte e felicidade para ti. :)

      Eliminar
  9. Parabéns por mais um excelente post!
    Em casa e já com mais de 3 anos continua a querer derrubar a coligação. Faz parte :)
    Bom dia !

    ResponderEliminar
  10. Extraordinário, dos melhores posts que li nos últimos tempos. E como compreendo :)

    ResponderEliminar
  11. Adorei!
    Por momentos achei que estava a reviver os momentos com o dissidente cá de casa :)
    Por cá o governo também já declarou estado de emergência. Espero que os reforços cheguem rápido!
    Beijinhos para a parceira de coligação e para o dissidente.

    ResponderEliminar
  12. Parabéns ! Os seus textos são deliciosos e repletos de ensinamentos. São uma lufada de ar fresco neste amontado de fazedores de opinião . Continue com a boa governação e publicação dos resultantes editais aqui no blog.

    ResponderEliminar
  13. Post 5 estrelas!

    A São já lhe deu belíssimos conselhos e tem mais experiência do que eu, mas eu vou dar um só, acerca do dissidente não querer comer: quando ele disser que não quer comer, pergunte mais uma vez e avise: "se voltares a dizer que não queres comer, tudo bem, não comes. Mas depois quando sentires fome, vais ter de esperar até serem horas de comer outra vez..." Depois, seja fiel ao que disse, mesmo que ele grite, desesperado, que "quer comeeeeeeeeeer", "tem fooooooooooome". Isto, claro, se a si e à parceira de coligação parecer boa ideia. Com os meus funcionou e, na verdade, poupou-nos muitas dores de cabeça!

    ResponderEliminar