28/04/2015

O DIA EM QUE CAIU DO TRONO




Um dia disse ao meu filho que ele era capaz de fazer tudo. Foi já há algum tempo. Era ele mais pequenino ainda. Não me lembro bem o que era, mas ele estava a fazer qualquer coisa e disse "não consigo". Achei que era a minha deixa. Disse-lhe olhos nos olhos "tu consegues tudo. Nunca te esqueças disso". Esqueci-me foi que ele tinha 2 anos. Cá metáforas ainda não pegam nesta idade. Esqueci-me que os miúdos nesta idade levam as coisas um pouco à letra. E que um gajo tem de explicar tudo bem explicadinho senão dá merda. E assim foi. Não expliquei e deu merda.

Comecei por ensinar o meu filho a andar de skate com 2 anos. Desde muito cedo ele adorou. E começou a ganhar-lhe o jeito. Fui andando com ele, ensinando o que deve ou não fazer, o que pode ou não fazer. Ele foi evoluindo. Agora com 4 anos, chegou a uma fase que eu achei que ele devia passar a ter aulas com um professor e outros miúdos. Achei que podia ajudá-lo a desenvolver outras técnicas. Aprender outras coisas. Conhecer outros miúdos. Aprender com os mais velhos. Então começou as aulas. Tem dois professores ex-skaters profissionais. Além de bons skaters, bons professores. Lógico que os colegas na aula são todos mais velhos. É o único com 4 anos. E naturalmente tem as limitações inerentes à idade. Sempre que a aula começa, está com a moral toda. Motivado. Orgulhoso. Divertido. À medida que a aula vai avançando começa a esmorecer. Até que desiste a meio. Apesar do meu filho ser muito bom no skate para idade dele, apesar de ser capaz de fazer muito mais com um skate do que maioria dos miúdos e das miúdas com 4 anos, apesar de adorar, nas últimas aulas desistiu a meio, Cabeça para baixo, skate a arrastar. Aconteceu não uma, mas duas vezes.

Como não sou parvo, naturalmente nunca mostrei má cara. Nunca me mostrei chateado, nunca me mostrei desiludido, nem triste nem nada disso. Simplesmente perguntava-lhe "queres ir embora filho? de certeza?".
Nunca o obriguei a andar e só ia às aulas quando queria. Até que um dia, sentados em cima dos skates, perguntei: "filho, porque é que não queres estar nas aulas? gostas de lá estar ou não gostas muito?" Ao que ele me responde "gosto mas pensava que era só para fazer o que eu sei".

Ahhhhhhhhh. Toda a festa que eu fazia quando ele conseguia alguma coisa, todas as vezes que lhe disse que ele consegue tudo, todas os gritos que ele era o maior, vieram bater-me à porta. Ali na aula, com os miúdos mais velhos a fazerem mais do que ele é capaz, ele sente-se um underachiever. Incapaz de chegar ao nível dos outros. Nos olhos dele, ele vê todos a andarem muito melhor que ele, a fazerem mais do que ele, incapaz do distanciamento para perceber a diferença de idades, força, anos de experiência que o separam do resto da turma. Por isso ele sente-se incapaz de chegar e estar ao nível dos outros. E por isso acha que já não consegue tudo como eu tantas vezes lhe disse. Que já não é o maior. Sente-se desiludido. E acha que me vai desiludir. Porque na aula ninguém faz a festa que um pai faz. Percebi.

Expliquei-lhe que ele está nas aulas para fazer o que sabe e também para tentar aprender a fazer o que não sabe. Que tentar é fixe. E é divertido. Que ele é o mais pequeno da turma e que por isso não consegue fazer algumas coisas iguais aos outros. Que eu também já fui pequeno. Mas que ele é especial por ser tão pequeno e conseguir estar na turma dos grandes no skate. E que quando for grande vai conseguir fazer igual aos outros. Que para conseguirmos alguma coisa, temos que tentar. Aprender. E tentar.

Parece mentira que eu tenha conversas deste calibre com um miúdo de 4 anos. Mas tenho. E aprendo todos os dias com ele. Como ele certamente aprende comigo. É tão fácil cair na asneira de os iludir demasiado quando os amamos tanto. Fazemos uma festa tremenda de qualquer coisinha. Como se fossem semideuses. Ao ponto deles acreditarem que o são. E daí à desilusão é um instante. Depois é arregaçar as mangas, encher o peito e sentar ao lado deles e explicar o que devia ter sido logo explicado desde início.

Ou não. Talvez isto faça parte. Sei lá eu. Eu também só ando nisto de ser pai há 4 anos. E é a minha primeira vez. Também ando a apanhar bonés. Não sei tudo. Faço o melhor que sei. Vou tentando. E aprendendo. Um gajo tem de elogiar, mas não muito. Um gajo tem de ralhar, mas não muito. Um gajo tem de ensinar, mas não muito. Um gajo tem de exigir, mas não muito. Porra pra isto. Uma coisa é certa. Um gajo tem é de os amar e respeitar. E é muito.

12 comentários:

  1. Queres adoptar-me?! :) ...pq para quem anda nestas lides "apenas" há 4 anos, estás a ficar um expert!! Na verdade, nada como ter capacidade de introspecção e humildade para admitir q se erra... depois é só pensar numa solução para o erro cometido e... amar... amar mesmo muito! E assim, se criam futuros adultos seguros e tranquilos, pq quem tem como exemplo, um pai/mãe que erra e consegue admitir que assim é e ainda por cima consegue arranjar uma solução, transmite a segurança de que se pode errar sem que daí venha mal ao mundo e a humildade de saber que nós somos uma peça na engrenagem... há q saber mantê-la bem oleada... Parabéns a ti e à tua metade por 4 anos de parentalidade bem recheada de coisas boas! ;) Bjs

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  2. Tod@s erramos, faz parte. Bom é que reconheçamos os erros e tentemos melhorar.

    O equilíbrio de que fala e tão necessário é constrói-se dia a dia e é feito de um cristal muito delicado que se quebra com extrema facilidade.

    Pelo que escreve, o seu menino tem sorte em tê-lo como pai.

    Beijinhos para ele, saudações para si.

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  3. Mas como não fazer a festa com os pequenos (grandes) feitos?! São pedaços de nós que atirámos para o mundo, é como se renascêssemos neles. Eu deixo que eles continuem a pensar que para mim são sempre os melhores. Mesmo quando para os outros não o são. E cá estarei para os apoiar quando perceberem isso. Excelente texto.

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  4. Tão bom. E bonito. E muito.

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  5. Gosto muito de te ler. Esta questão que aqui falas também me assalta muitas vezes e embora já seja mãe há 15 anos e de quatro viagens, com este último sinto muitas vezes essa coisa de o estar a iludir, de o "enganar" com as reações demasiado efusivas que temos face a qualquer comportamento com graça ou com jeito, ou... aqui em casa somos 5 para 1, as irmãs são crescidas e fazem coro connosco sempre que o Raul consegue uma coisa ou faz uma piadola, e eu temo o(s) dia(s) em que ele sentir que andámos um bocado a exagerar nos aplausos.
    Nesse dia conto estar lá para, como tu, explicar melhor as cenas. Obrigada pelas tuas partilhas, és um Pai e pêras!

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  6. Lindo.... nós, pais, estamos sempre a aprender.... e também nós crecemos com eles.
    Conheces a Mum's the Boss?? Vais gostar... :)
    http://mumstheboss.blogspot.pt/

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  7. Acho que resumiste isso muito bem no último parágrafo. É amá-los, o resto vem por acréscimo.

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  8. E é por isto que eu volto sempre...tenho uma paixão pelo skate e gosto muito de te ler!
    Adorava ter ensinado o meu a andar de skate, sou de Almada e os meus melhores amigos na altura era dois rapazes que tinham sido campeões nacionais e um outro tb skater mas noutra modalidade.
    O Bruno Tirapicos o melhor morreu na curva da morte na Costa e o outro o Cláudio Leal de ataque epiléptico.
    Quando mudei para o campo percebi que skate e surf n ia constar das modalidades que iam aprender...são escolhas!
    Em vez disso tenho um cromo do pc, des o ano e meio. Neste momento tem 8 anos e já tem 3 sites, diz que quer ser youtuber...e eu tem dias que o abano do trono pq Portugal é mt diferente destas coisas dos outros países... quero que siga sonhos, mas quero que veja a realidade das coisas.
    Bom fim de semana

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  9. Também eu digo ao meu filhote de cinco anos que ele consegue tudo. E não me parecia uma coisa má...
    É muito difícil manter esse equilíbrio que tão bem descreves, porque se tratam das nossas emoções.Tudo se resume ao amor que lhe temos.

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  10. Nós nunca sabemos muito bem onde meter o pé, testamos as águas e as profundidades à medida que as vamos encontrando.

    Lembro-me de ser pequena e o meu pai me dizer muitas vezes "se é bom, não é para ti". Era algo que a minha avó lhe dizia e ele transmitiu. Ao longo dos anos, e à medida dos diferentes desafios, sempre que me entusiasmava com algo ainda incerto, mas para o qual tentava sempre, ele lembrava-me essa frase. Fá-lo hoje em dia ainda.
    Sei que ele só queria resguardar-me dos perigos da desilusão, das quedas dos sonhos altos, mas sei também que nunca me permitiu ter aquela segurança do "eu sei que sou capaz". Aquela coisa de acreditar que algo bom me pode acontecer, só porque me esforcei por isso.

    Hoje sou mãe de um miúdo espectacular, da idade do teu.
    Quando mostra interesse por algo, incentivo. Gosto que tente e gosto de refrear os meus medos, nem que seja em coisas simples como andar de skate, ignorando o meu "e se ele se parte todo e se magoa?".
    Ele é realmente muito inteligente para a idade, é o menino-sensação do colégio, elogiado pelo desenvolvimento intelectual que já tem, seja pelas educadoras, seja pelos familiares.
    Tento refrear um pouco o entusiasmo, elogio, mas não "bato palmas".
    Daqui a pouco tempo a escola é maior, os desafios maiores e não quero que ele tenha a ilusão, como já diz, "que sabe tudo". É algo que ouve à volta dele e repete.
    Tento conversar e explicar, mas não sei, tal como tu, se ele entende o alcance do que lhe quero transmitir.
    Para mim, ele é o melhor do mundo e quero que seja um menino confiante. Mas também quero que saiba ser humilde. Que saiba que hoje pode saber muito, contudo, ainda há tanto mais para saber.... Que os outros meninos não são pouco inteligentes, simplesmente "sabem mais de outras coisas..." ou têm outro ritmo de aprendizagem.

    É uma treta às vezes, tentarmos fazer o melhor que sabemos, sem saber se é de facto o melhor.
    Se não nos questionarmos e formos ajustando a rota, não estamos a fazer algo "bem".
    Porque outra coisa que o meu pai me ensinou, é que "quem tem muitas certezas, pouco sabe".

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  11. conseguiste entende-lo perfeitamente... és um excelente pai!

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