04/09/2014

A BALA QUE PASSA AO LADO

Hoje em dia é difícil ter fé. É natural. Não é que hajam mais tragédias e dramas pessoais ou colectivos do que antes. Não é isso. Sempre existiram. Doenças, epidemias, guerras, mortes, separações, abandonos, abusos, torturas, pobreza. Houve sempre disso. Mas a globalização da informação dá-nos uma percepção de que o mundo está a desabar. Temos mais consciência dos abalos nas vidas de gente por este mundo fora do que alguma vez tivemos. Junta-se os nossos dramas pessoais a esses pelo mundo fora, e este quase parece um mundo com prazo de validade expirado. Difícil ter fé. Quase parece que Deus se cansou e bateu com a porta. Ou que o caos organizado do universo se desalinhou por cansaço dos iões e dos átomos. O que quero dizer é que dá a sensação que fodemos isto tudo e que agora "we're on our own". Desculpem a linguagem. É um abalo à fé. É mesmo. No meio disto tudo, tenho um filho. Com quase 4 anos. O mundo dele é mais simples. Heróis não morrem nunca. Os "maus" morrem mas estão vivos logo a seguir. Porque só são "maus" a fingir. E a morte é tipo uma sesta repentina que dura só até o herói e o "mau" se juntarem os dois à mesa com ele a lanchar. Bolachas de chocolate com iogurte. Doenças para ele chamam-se "dói-dóis" e resolvem-se com betadine e um penso colorido. Guerra nem sabe o que é. Nem nunca deve ter ouvido a palavra. Uma caveira para ele representa um pirata e não a morte. E o pirata para ele representa um tipo de pala, com barco, muitos amigos e um papagaio. Não um daqueles tipos da Somália que assaltam barcos e raptam pessoas. É mais simples o mundo dele. Ainda carregado de fé. Fé que vai ter aquele brinquedo com que sonha. Fé que vai passear, não interessa onde. Fé que vai comer frango com batatas fritas. Mesmo que que não tenha nada disso quando pede. Mas tem sempre fé. Todos os dias me pergunta se vai ter o transformer, se vai passear, se vamos comer frango, se vamos pintar a cara com a Tia Carla, se vamos andar de skate para a Quiksilver. Todos os dias. Tem fé. E nós, nós pais, aqui a balançar entre o ensinar-lhe a ter fé e o nem tudo vai ser como ele espera. Tarefa ingrata esta. E difícil pra caraças. É como dizer-lhe "tens que acreditar filho" e depois dizer-lhe "não vais ter sempre o que queres só porque acreditas". Então porque é que havemos de ter fé? Porque havemos de acreditar? Se muitas vezes não parece resultar? Num mundo a azedar, com prazo de validade quase expirado, como é que preparo o meu filho para a trampa que vai ver sem que azede ele também? E porque hei-de fazê-lo? Deve haver gente com respostas mais inteligentes e lógicas do que a minha para isto. Eu cá só tenho uma teoria. Porque milagres acontecem. Há sempre uma bala que passa ao lado. Acreditem.

Nota. O vídeo abaixo contém imagens gáficas que podem impressionar.

8 comentários:

  1. Eu podia dizer, "$0%#-se"..., mas vou optar pelo "Glup"...

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  2. Sentir a fé vacilar é inevitável à condição humana. Achar que Deus bate com a porta (e muitas das vezes na nossa cara), também o é. Mas, lá bem no fundo, todos acreditamos que um dia os "maus" vão acordar e pensar "o que é que estamos a fazer?! isto não vale a pena!". Acreditamos nisso porque o desejamos com tanta força que terá de acontecer. After the storm, comes the rainbow. E eu anseio pelo dia em que "bons" e "maus" se sentem à mesa para lanchar.

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  3. Passo a vida a ir ao encontro da ideia de que tudo isto poderá ter um sentido, mas depois vamos acompanhando tudo o que referes e só me ocorre que isto é tudo uma roleta russa.

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  4. «Guie uma criança pelo caminho que ela deve seguir e guie-se por ela de vez em quando.» Josh Billings

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  5. Boas questões. Já sei que um dia vou andar igualmente preocupada e com a cabeça a 1000, a pensar como irei explicar à minha filha as regras do mundo. E se o mundo é este sítio tão esquizofrénico, porque raios a trouxe para cá...

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  6. Esse é o meu grande dilema. Como o preparar para todos os muros que vai encontrar pela vida fora sem lhe retirar a capacidade de acreditar que tudo é possível quando se quer muito...

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  7. É também um mundo onde sabemos mais facilmente que algures, alguém, sente precisamente o mesmo que nós, vive o mesmo drama, tem os mesmos medos, paixões e dilemas.
    É um mundo doido, que todos os dias nos dá provas da sua mesquinhez, mas é um mundo onde algures, alguém, já provou que é possível, basta sermos mais, basta sermos melhores.

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