30/12/2013

HERÓI E PIRATA


É sabido que sou dado a tatuagens. E na semana passada fiz mais uma. Uma "sugar skull" de homenagem ao meu avô (caveira decorada e feliz que na tradição mexicana celebra a vida e honra a pessoa falecida). Já faz alguns anos que morreu num acidente. Uma merda sem jeito nenhum. Mas assim foi. E ainda hoje morro de saudades dele. Queria tanto que ele e o meu filho se tivessem conhecido pessoalmente. Iam se adorar. Tenho a certeza. Era impossível não se adorar o meu avô. E por isso fiz a tatuagem. Juntamente, tatuei 2 objectos que andavam sempre com ele e que eu herdei. O canivete e o relógio. O canivete que ele usava para tudo. Para cortar pão. Para cortar ramos de árvores para me fazer um arco e uma flecha. Para abrir nozes. Para comer uma maçã. Servia para tudo. Para mim representa mais que o simples canivete que ele carregava no bolso. Representa a versatilidade do meu avô. Representa todas as coisas diferentes que ele sabia fazer. Representa o seu talento e paixão de trabalhar com as mãos. E transformar uma coisa simples num acto mágico.
Tatuei também o relógio (apesar de ainda faltar tatuar os ponteiros e as horas, mas já não aguentava mais e ficou para a 2ª sessão). O relógio foi lhe dado quando vivia nos Estados Unidos. Foi lhe dado como prémio na fábrica onde trabalhava ainda eu não era nascido. Nunca mais o tirou. Até ao dia da sua morte. Lembro-me de o ver todas as manhãs a dar corda ao relógio enquanto bebíamos yerba mate juntos. Era motivo de orgulho aquele relógio. O símbolo do empenho e do trabalho. Da coragem de ter saído da Argentina e ter ido para um país (EUA) onde não falava a língua e do qual nada conhecia. Símbolo do reconhecimento. Também herdei esse relógio. Que para mim simboliza a humildade, o trabalho, o sangue e o suor. Simboliza o orgulho no que se faz e no que se é.

Carrego no peito, por dentro e por fora, a aura de um homem fora de série. De um herói que me protege e olha por mim a cada passo da minha vida. Que me lembra do que é feito o carácter.
Um homem que me ensinou pequenas grandes coisas. A imagem pela qual me tento moldar. Um homem humilde. Trabalhador e lutador. De uma honra inabalável. De uma bondade e coração sem limites nem fronteiras. Adorava uma boa partida. E fazia rir todos. De forma muito fácil. Era quase magia. Sempre admirei como raras vezes se queixava de alguma coisa. Educou-me durante uma boa parte da minha vida. Cresci com ele. Passou-me valores que hoje fazem parte da fibra da minha pessoa. Ensinou-me tudo o eu que precisava de saber. Ensinou-me a jogar ao pião. A plantar uma árvore. A apanhar fruta. Com ele aprendi a usar um martelo, um serrote, um machado. Aprendi a rachar lenha para a lareira. A escolher a melhor. Ensinou-me a fazer armadilhas para apanhar ratos e toupeiras sem os matar. Ensinou-me a malhar feijão. A fazer uma fisga com um ramo de marmeleiro, um bocado de couro e uma câmara de ar de um pneu. Ensinou-me a diferença entre pardais, pintassilgos e verdilhões. Ensinou-me a relativizar os problemas. Que não valia a pena nos chatearmos com a vida e com as pessoas. Com ele bebia yerba mate todas as manhãs. Jogávamos à bola. Andávamos de bicicleta. Víamos os combates de boxe juntos. Com ele ia apanhar polvos. Ensinou-me a lixar, a envernizar e a pintar. Ensinou-me como pegar e carregar uma saca de batatas às costas sem as partir. E adorava as tardes passadas a lavar garrafas, para depois as encher com o vinho caseiro que guardava nas pipas. Ficava orgulhosamente ao lado dele na missa ao domingo. Lá em cima naquela varanda onde ficavam os homens. Por isso tudo fiz esta tatuagem.
Obrigado por tudo. Que foi tanto, sem que eu nunca tivesse que pedir nada. Obrigado Avô. Obrigado Viejo.

Tenho tanta pena do meu filho não ter um avô assim. Já o disse algumas vezes. Mas a vida é assim mesmo. Para compensar, costumo dizer em brincadeira que sou pai-avô. E para me convencer que isso até pode ser fixe, relembro que o Brad Pitt que fez agora 50 anos, teve filhos com 45, portanto ele também um "pai-avô".

Voltando ao meu avô. Para mim ele é e será sempre o meu herói.
Para o meu filho, ele é alguém que está lá em cima "nas estrelas ao lado de Jesus", como ele diz. E talvez um pirata. Porque é isso que o meu filho vê quando olha para a minha tattoo. Que o bisavô "é um pirata" que está lá em cima "nas estrelas com Jesus". Pois eu acho que era assim mesmo que o meu avô gostaria de ser lembrado.

5 comentários:

  1. Adorei a tua homenagem. A sério!

    ResponderEliminar
  2. Bonita homenagem ao Avô, que me parece que foi um Pai ☺
    Que a memória se mantenha e os ensinamentos perdurem ☺ é o melhor que se pode fazer pelos que já partiram, honrando a sua memória.

    ResponderEliminar
  3. Por um segundo revi o meu Avô no teu post. Também ele um homem tão extraordinário quanto simples. Também ele admirado por todos. Também ele carregava a faquinha do costume, aquela com que de um caroço de cereja fazia um cesto, um cesto que eu carregava num fio ao pescoço. Também ele tão cheio de vida e boa disposição, logo perdê-la num acidente tão estúpido...
    Também eu lamento, oh se lamento, a falta dele no meu casamento e na vida do meu Filho.... Seriamos todos tão mais ricos!
    Obrigada pela linda homenagem ao teu Avô... Que por segundos senti ser o meu!

    ResponderEliminar
  4. Uma homenagem fantástica, brilhante! Sou uma jovem, no entanto nunca tive oportunidade de conhecer nenhum dos meus avôs. Tudo o que sei deles é o que os meus pais me transmitiram nas histórias que me contavam sobre a sua infância, das fotografias que me mostravam. E sei também que a minha mãe descobriu que estava grávida de mim no dia em que o pai dela faleceu (o que é uma coincidência muito falada na minha família). Por isso entendo, não as saudades que sentes, mas a falta que o teu Avô fará ao teu filho.

    ResponderEliminar
  5. Por momentos vi nestas palavras o meu Avô... tb ele foi/é para mim um exemplo... um motivo de orgulho... tb guardo os objectos que ele se fazia sempre acompanhar... um canivete e um relogio de bolso... tb eu tenho muita ''pena'' do meu filho não o conhecer ( e vice versa)...obrigado por este post que me transportou no tempo e me lembrou ( mais uma vez) a importancia do meu AVÔ...abraço

    ResponderEliminar